MINHA COZINHA (LAR, FOGO E ACONCHEGO)

Há alguns anos li o livro A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, uma análise histórica de como era a vida - cotidiana, política e social - da cidade-Estado nas antigas Grécia e Roma. A partir daí entendemos de onde vêm diversos conceitos e tradições que permeiam a cultura ocidental.

Em minha leitura, uma informação ficou gravada na memória: a etimologia da palavra lar. O fogo lar era uma chama que deveria permanecer acesa no centro da morada dessas antigas famílias; era uma forma de manter viva a lembrança dos antepassados, que eram cultuados como verdadeiros deuses, ainda antes do surgimento do politeísmo naquela região.

Essa chama tinha que ser alimentada, mantida e cuidada, constituindo o o centro de união simbólico da estrutura familiar da época. Daí vem a etimologia da palavra lar, que atualmente é usada como sinônimo do lugar onde está o nosso conforto, onde depositamos nossos afetos, nossa casa e nossa família (inclusive a unipessoal). Mais que um lugar, o lar, como diz a música do Green Day, é onde o seu coração está (Jesus of Suburbia: home is where your heart is but a shame 'cause everyone's heart doesn't beat the same).

Não por acaso, o mesmo fogo que era cultuado também fazia a função de de aquecer e permitir a alimentação de todos os membros da família. Aqui podemos enxergar um resquício dessa tradição que chegou aos dias atuais, onde ainda existe esse espaço de calor e aconchego: a cozinha.

Amo cozinhar. Amo colher as ervas e temperos do jardim. Amo misturar camadas de cores, texturas e sabores que irão se transformar em alimento para aqueles que amo e aprecio. De certa forma sinto-me bem nessa espécie de servidão espontânea, como se o ato de manipular e converter ingredientes em um alimento completo me fizesse um tipo de bruxa que prepara poções secretas em seu caldeirão.

E é na cozinha, ao redor da chama do fogão, onde acontecem as melhores conversas, regadas a taças de vinho, golinhos de licor e, sempre acompanhadas de um cafezinho. 

Não consigo imaginar cenário melhor do que, ao som de Mercedes Sosa, cozinhar uma bela e colorida moqueca com farofa de dendê; mainha ajudando a cortar a cebola e painho (com sua taça de vinho em mãos),  na tentativa de provar o caldo que já está fervendo na panela (meu caldeirão), levando um leve tapinha da bruxinha aqui, pois "ainda não está pronto!".

Há aconchego melhor do que esse? Dorothy responderia com "não há lugar como nosso lar".

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